1998: o escândalo Clinton-Lewinsky dá uma nova motivação ao puritanismo americano, eternamente em busca de um inimigo a combater. Ao longo da história da democracia mais antiga do mundo, pelas mãos do puritanismo, foram-se os índios, os ingleses, a aristocracia do Velho Sul e o comunismo. No final da década de 90, porém, a economia ia bem e faltavam três anos para os ataques de 11 de setembro, que selaria de uma vez por todas o terrorismo islâmico como o novo inimigo da ideologia puritana. Que melhor inimigo a combater que não o bom e velho sexo? Ou melhor, a sexualidade alheia?
Foi esse contexto que o escritor Philip Roth escolheu para fechar sua trilogia sobre a América pós-guerra, marcada pelos conflitos da Coreia e do Vietnã, a liberdade sexual e a ascensão de grupos sociais como o Movimento Negro, que, de mãos dadas com a elite intelectual do pais, instituíram o politicamente correto - inicialmente, uma maneira de determinar como minorias injustiçadas e perseguidas ao longo da história deveriam ser chamadas. Hoje, um meio de coibir a expressão artística, o debate de ideias, a produção intelectual, o humor e o pensamento.
A Marca Humana (2000) – que fecha a trilogia composta por Pastoral Americana (1997) e Casei com um comunista (1998) – narra a história de Coleman Silk, um professor/ decano demitido da faculdade Athena, que modernizou, por referir-se a dois alunos que nunca foram às suas aulas como spookies (o equivalente a zumbis em português). Os alunos, que ele não conhecia pessoalmente, para seu azar, eram negros e foram aproveitados pelos inimigos de Silk para tirá-lo da faculdade, sob alegação de racismo.
Fora da Athena, tempo depois, Coleman, homem libertário e de vigor intelectual, revive intensamente a sexualidade por meio de um relacionamento com a faxineira Faunia Farley – trinta anos mais jovem e muito mais pobre do que ele – e do uso do Viagra. Em seu caso de alto teor sexual com Faunia, o ex-decano da Athena, novamente, age na contrapartida das regras vigentes nos EUA do final do século XX. E é punido por isso, acusado, agora, de abuso sexual à pobre faxineira.
2009: a ineficácia e corrompimento das instituições brasileiras trazem uma série de leis e eventos que coíbem as liberdades individuais. A proibição ao cigarro alastra-se em todos os ambientes fechados do país, compondo um novo aparthaid social, onde os fumantes são classificados (pelos politicamente corretos) como doentes inescrupulosos interessados em adoecer os não-fumantes; o jornal O Estado de São Paulo é censurado pelo juiz Dácio Vieira, do TJ-DF, que conseguiu o cargo graças a José Sarney, pai de Fernando Sarney, aquele que entrou com a ação contra o jornal paulista e um italiano é preso numa praia em Fortaleza por dar um “selinho” na filha.
Nesse contexto, um sarcástico e inteligente professor universitário de uma cidade provinciana mantém casos, de uma tarde no motel, com moças muito mais jovens que ele.
Ateu fervoroso, com consistência pregava a palavra do ateísmo numa sociedade marcada pelo catolicismo (sobre o qual ele escarnecia) e pela ignorância que a fé religiosa traz – mesmo quando ela é tão hipócrita quanto as justificativas do juiz Dácio Vieira para censurar O Estado de São Paulo. Apesar de não acreditar na família enquanto instituição, falava com orgulho e afeto dos filhos.
Na faculdade, “ofendia” alguns alunos com seu ateísmo e outros com suas piadas sobre gays.
Acabou preso.
Não pelo seu ateísmo – ainda que isso, para a cidade provinciana onde vivia, fosse uma prova de sua falta de caráter para a fé e a ignorância.
Não por suas piadas sobre gays – ainda que isto agredisse seus alunos desprovidos de humor.
Por sua sexualidade. Sim, por sua sexualidade, pego num motel com três garotas cerca de 40 anos mais jovens do que – supostamente três adolescentes de 14, 15 anos (o que, até o presente momento, não está provado.)
O Professor vinha sendo investigado há quinze dias pelo DEIC (Departamento Especial de Investigação sobre Crime Organizado), após uma delação anônima (algo estimulado pela lei antifumo, mas a questão agora é o sexo.). Também secretário de Administração de outra cidade interiorana, ele há tempos lutava para combater a corrupção dentro da prefeitura onde atuava, sobretudo no superfaturamento de obras públicas.
À prisão, seguiu-se a exoneração de seu cargo de secretário nessa prefeitura e na faculdade em que lecionava (poderia dizer o nome dela e da cidade onde trabalhava, mas não irei).
Na Província onde morava, tão pequena e devastada pelo politicamente correto (como se já não possuísse defeitos o bastante) quanto àquela em que Coleman Silk vivia, em New England (nos EUA), os jovens e os adultos, que se portam como adolescentes, agem na superfície daquilo que se chama modernidade. Fazem sexo com a pessoa que conheceram na primeira noite e não ligam no dia seguinte, se divorciam por qualquer motivo e têm nos bares e bebidas alcoólicas (consumidas com voracidade) o único entretenimento – coisas que seriam chocantes até meados dos anos 60 e hoje são banais – mas que para eles, assim como para a massa de qualquer pequena e grande cidade, são transgressões, pois vivemos numa sociedade que se considera ultramoderna baseada nas normas vigentes há cinquenta anos e deixa de perceber seus problemas e preconceitos atuais, deixa de ver sua precariedade quanto ao respeito às liberdades individuais e não debate o que deixou de ser feito pela contracultura e o que precisa ser feito para o amanhã.
Ao saber do caso do Professor, a Sociedade da Província, agarra-se às mãos da ignorância, do falso moralismo, do desejo de massificação do outro, do senso-comum, da repressão sexual e do politicamente correto para destroçá-lo. Enquanto a Polícia o acusa de corromper menores, a Sociedade, por não saber bem que crime é esse, o acusa de pedofilia, sem saber ao certo a idade das garotas que estavam com ele no motel, e atribui o crime – mesmo que o Professor ainda não tenha sido condenado pela Justiça – à sua falta de Deus no coração. (Ocupados em destruir o Professor, os adultos da Sociedade deixam as filhas de cinco anos calçarem sandálias de salto para dançar funk e os filhos de nove anos entrarem em sites pornográficos.).
A Província julga, porém, o Professor não é o único mau elemento do caso. As três garotas, que também não possuem Deus no coração nem uma família bem estabelecida, são tão espúrias quanto ele. Mas são pobres – o que, para a Sociedade e sua legislação do politicamente correto, é um motivo válido para a redução da pena. Por isso, as meninas estão livres de ter o mesmo fim reservado à Faunia Farley.
Um castigo digno ao Professor, segundo a Sociedade, não é dar-lhe o mesmo fim de Coleman Silk – a morte – e, sim, um sofrimento em vida, na cadeia. Por desejar uma garota muito mais nova do que ele e transar com ela, “O Professor merece virar ‘bonequinha’, ser estuprado, apanhar na cadeia”, diz a Sociedade. “Não bastasse uma garota, três! Precisa de três?”, considera a Sociedade, ignorando o fato de que as garotas 40 anos mais jovens que o Professor têm um corpo com curvas e lubrificação, e muitas delas já sabem seduzir um rapaz de 20 e poucos anos que lhes interessa – como aqueles de costas largas, corpos com apenas 8% de gorduras, dirigindo um carro ganho do pai. As garotas do caso, certamente, pensam no que comprar com o dinheiro pago pelo Professor. Senão, seus pais, que a Sociedade não julgou nem condenou, cumprem essa função.
Praguejando o estupro, a agressão e a humilhação do Professor, a Província esqueceu de se perguntar:
“Será que ele usou Viagra?”, sem fazer qualquer analogia com Coleman Silk ou qualquer outro romance do Philip Roth, dado que, se nem Paulo Coelho vende muito por aquelas bandas, quem dirá o autor de A Marca Humana.
Além disso, ninguém foi criativo o suficiente para pensar numa nova versão da pornochanchada O Homem de Itu, baseado nesse caso – e mantendo-se o título original, evidentemente.