segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O Homem de Itu



1998: o escândalo Clinton-Lewinsky dá uma nova motivação ao puritanismo americano, eternamente em busca de um inimigo a combater. Ao longo da história da democracia mais antiga do mundo, pelas mãos do puritanismo, foram-se os índios, os ingleses, a aristocracia do Velho Sul e o comunismo. No final da década de 90, porém, a economia ia bem e faltavam três anos para os ataques de 11 de setembro, que selaria de uma vez por todas o terrorismo islâmico como o novo inimigo da ideologia puritana. Que melhor inimigo a combater que não o bom e velho sexo? Ou melhor, a sexualidade alheia?
Foi esse contexto que o escritor Philip Roth escolheu para fechar sua trilogia sobre a América pós-guerra, marcada pelos conflitos da Coreia e do Vietnã, a liberdade sexual e a ascensão de grupos sociais como o Movimento Negro, que, de mãos dadas com a elite intelectual do pais, instituíram o politicamente correto - inicialmente, uma maneira de determinar como minorias injustiçadas e perseguidas ao longo da história deveriam ser chamadas. Hoje, um meio de coibir a expressão artística, o debate de ideias, a produção intelectual, o humor e o pensamento.

A Marca Humana (2000) – que fecha a trilogia composta por Pastoral Americana (1997) e Casei com um comunista (1998) – narra a história de Coleman Silk, um professor/ decano demitido da faculdade Athena, que modernizou, por referir-se a dois alunos que nunca foram às suas aulas como spookies (o equivalente a zumbis em português). Os alunos, que ele não conhecia pessoalmente, para seu azar, eram negros e foram aproveitados pelos inimigos de Silk para tirá-lo da faculdade, sob alegação de racismo.

Fora da Athena, tempo depois, Coleman, homem libertário e de vigor intelectual, revive intensamente a sexualidade por meio de um relacionamento com a faxineira Faunia Farley – trinta anos mais jovem e muito mais pobre do que ele – e do uso do Viagra. Em seu caso de alto teor sexual com Faunia, o ex-decano da Athena, novamente, age na contrapartida das regras vigentes nos EUA do final do século XX. E é punido por isso, acusado, agora, de abuso sexual à pobre faxineira.

2009: a ineficácia e corrompimento das instituições brasileiras trazem uma série de leis e eventos que coíbem as liberdades individuais. A proibição ao cigarro alastra-se em todos os ambientes fechados do país, compondo um novo aparthaid social, onde os fumantes são classificados (pelos politicamente corretos) como doentes inescrupulosos interessados em adoecer os não-fumantes; o jornal O Estado de São Paulo é censurado pelo juiz Dácio Vieira, do TJ-DF, que conseguiu o cargo graças a José Sarney, pai de Fernando Sarney, aquele que entrou com a ação contra o jornal paulista e um italiano é preso numa praia em Fortaleza por dar um “selinho” na filha.
Nesse contexto, um sarcástico e inteligente professor universitário de uma cidade provinciana mantém casos, de uma tarde no motel, com moças muito mais jovens que ele.

Ateu fervoroso, com consistência pregava a palavra do ateísmo numa sociedade marcada pelo catolicismo (sobre o qual ele escarnecia) e pela ignorância que a fé religiosa traz – mesmo quando ela é tão hipócrita quanto as justificativas do juiz Dácio Vieira para censurar O Estado de São Paulo. Apesar de não acreditar na família enquanto instituição, falava com orgulho e afeto dos filhos.

Na faculdade, “ofendia” alguns alunos com seu ateísmo e outros com suas piadas sobre gays.
Acabou preso.
Não pelo seu ateísmo – ainda que isso, para a cidade provinciana onde vivia, fosse uma prova de sua falta de caráter para a fé e a ignorância.

Não por suas piadas sobre gays – ainda que isto agredisse seus alunos desprovidos de humor.

Por sua sexualidade. Sim, por sua sexualidade, pego num motel com três garotas cerca de 40 anos mais jovens do que – supostamente três adolescentes de 14, 15 anos (o que, até o presente momento, não está provado.)
O Professor vinha sendo investigado há quinze dias pelo DEIC (Departamento Especial de Investigação sobre Crime Organizado), após uma delação anônima (algo estimulado pela lei antifumo, mas a questão agora é o sexo.). Também secretário de Administração de outra cidade interiorana, ele há tempos lutava para combater a corrupção dentro da prefeitura onde atuava, sobretudo no superfaturamento de obras públicas.
À prisão, seguiu-se a exoneração de seu cargo de secretário nessa prefeitura e na faculdade em que lecionava (poderia dizer o nome dela e da cidade onde trabalhava, mas não irei).
Na Província onde morava, tão pequena e devastada pelo politicamente correto (como se já não possuísse defeitos o bastante) quanto àquela em que Coleman Silk vivia, em New England (nos EUA), os jovens e os adultos, que se portam como adolescentes, agem na superfície daquilo que se chama modernidade. Fazem sexo com a pessoa que conheceram na primeira noite e não ligam no dia seguinte, se divorciam por qualquer motivo e têm nos bares e bebidas alcoólicas (consumidas com voracidade) o único entretenimento – coisas que seriam chocantes até meados dos anos 60 e hoje são banais – mas que para eles, assim como para a massa de qualquer pequena e grande cidade, são transgressões, pois vivemos numa sociedade que se considera ultramoderna baseada nas normas vigentes há cinquenta anos e deixa de perceber seus problemas e preconceitos atuais, deixa de ver sua precariedade quanto ao respeito às liberdades individuais e não debate o que deixou de ser feito pela contracultura e o que precisa ser feito para o amanhã.
Ao saber do caso do Professor, a Sociedade da Província, agarra-se às mãos da ignorância, do falso moralismo, do desejo de massificação do outro, do senso-comum, da repressão sexual e do politicamente correto para destroçá-lo. Enquanto a Polícia o acusa de corromper menores, a Sociedade, por não saber bem que crime é esse, o acusa de pedofilia, sem saber ao certo a idade das garotas que estavam com ele no motel, e atribui o crime – mesmo que o Professor ainda não tenha sido condenado pela Justiça – à sua falta de Deus no coração. (Ocupados em destruir o Professor, os adultos da Sociedade deixam as filhas de cinco anos calçarem sandálias de salto para dançar funk e os filhos de nove anos entrarem em sites pornográficos.).
A Província julga, porém, o Professor não é o único mau elemento do caso. As três garotas, que também não possuem Deus no coração nem uma família bem estabelecida, são tão espúrias quanto ele. Mas são pobres – o que, para a Sociedade e sua legislação do politicamente correto, é um motivo válido para a redução da pena. Por isso, as meninas estão livres de ter o mesmo fim reservado à Faunia Farley.
Um castigo digno ao Professor, segundo a Sociedade, não é dar-lhe o mesmo fim de Coleman Silk – a morte – e, sim, um sofrimento em vida, na cadeia. Por desejar uma garota muito mais nova do que ele e transar com ela, “O Professor merece virar ‘bonequinha’, ser estuprado, apanhar na cadeia”, diz a Sociedade. “Não bastasse uma garota, três! Precisa de três?”, considera a Sociedade, ignorando o fato de que as garotas 40 anos mais jovens que o Professor têm um corpo com curvas e lubrificação, e muitas delas já sabem seduzir um rapaz de 20 e poucos anos que lhes interessa – como aqueles de costas largas, corpos com apenas 8% de gorduras, dirigindo um carro ganho do pai. As garotas do caso, certamente, pensam no que comprar com o dinheiro pago pelo Professor. Senão, seus pais, que a Sociedade não julgou nem condenou, cumprem essa função.
Praguejando o estupro, a agressão e a humilhação do Professor, a Província esqueceu de se perguntar:

“Será que ele usou Viagra?”, sem fazer qualquer analogia com Coleman Silk ou qualquer outro romance do Philip Roth, dado que, se nem Paulo Coelho vende muito por aquelas bandas, quem dirá o autor de A Marca Humana.

Além disso, ninguém foi criativo o suficiente para pensar numa nova versão da pornochanchada O Homem de Itu, baseado nesse caso – e mantendo-se o título original, evidentemente.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Caro Senador

De:
Danilo Thomaz (danilo_thomaz9@hotmail.com)
Enviada:
quarta-feira, 12 de agosto de 2009 4:07:11
Para:
jose-sarney@uol.com.br

***

Senador José Sarney,

Estou escrevendo porque não moro em Brasília e, no momento, não tenho condições de ir até a cidade para tentar dizer isso na sua cara. Vamos ao que interessa.

A sua postura diante de toda essa crise é de uma arrogância sem precedentes. Culpado ou não, o senhor, sobretudo por ser um senador da República, deveria pensar no Estado brasileiro, no quanto ele tem perdido, no quanto votações sérias e importantes, que podem mudar a vida do cidadão brasileiro, estão deixando de ser feitas por conta da sua presença presidindo o Senado. A sua presença ali torna inviável qualquer trabalho. A sua presença ali torna inviável o Brasil como país.

Sentado naquela cadeira, negando acusações e inventando propósitos que não existem - de que a imprensa paulista quer derrubá-lo - o senhor fragiliza o país como instituição. Sentado naquela cadeira, culpando a imprensa por tudo, o senhor ajuda a destruir este país, o senhor ajuda os políticos a serem mais cínicos, o senhor ajuda a Justiça a ser mais desmoralizada, ajuda a aumentar a violência, o senhor piora o país como um todo sendo que, enquanto senador, deveria fazer justamente o contrário. Justamente o contrário. Aquela cadeira não é sua. O Senado não é seu. Em qualquer país civilizado, políticos que estão debaixo de tantas acusações, como é o caso do senhor, ausentam-se para que a verdade venha à tona.

Pelo presidente que o senhor foi, o senhor JAMAIS deveria ser senador, representar um estado, cuidar da unidade federal. Jamais. O senhor foi um dos piores presidentes que este país, sempre mal governado, já teve. E eu não aceito a desculpa de que o senhor não nasceu para a política e, sim, para a literatura. O senhor é um péssimo escritor. E, de todos os editoriais da Folha de São Paulo, o seu é o pior: vazio, pobre em argumentos e uso de palavras, desprovido de qualquer utilidade pública.

Eu me sinto ofendido com a sua presença no Senado e na presidência da Casa. Extremamente ofendido.


Danilo Thomaz

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Assim caminha a humanidade


Costumava andar desatento pelas ruas. Utilizava minhas caminhadas para pensar em como melhorar a frase de um texto ou resolver o impasse de uma narrativa. Mesmo assim, nunca fui bobo. Sabia que não estava em Genebra, mas em São Paulo. Mesmo assim, fui bobo. Achei que o Mulatinho, tão desbotado quanto sua roupa e seu boné, que caminhava próximo a mim na calçada, era apenas um moleque pobre e que eu, branco e estudante de uma universidade particular, com camiseta Ellus, calça Levis e sapatênis Adidas, não passava de um burguesinho preconceituoso. Após atravessar a rua com os pés movidos pela precaução que eu julgava ser preconceito, caminhei pela outra calçada com a cultura da culpa instituída pelo politicamente correto. E tive de ouvir:

“Por que você atravessou a rua? Tá achando que eu vou te assaltar?”, perguntou o Mulatinho, que também atravessara a rua, num português menos correto.

Burguesinho branquelo, acelerei o passo do meu Adidas.

“Hein, por que atravessou a rua? Por que está andando rápido?”

Burguesinho branquelo, olhei para a marquise e respondi – num português correto:

“Atravessei a rua porque era este o meu caminho. Estou andando rápido porque estou com pressa.”

“Anda devagar, por que a pressa? Tá achando que eu vou te assaltar, moleque?” Com os olhos para a marquise, porém sem vê-la, ouvi a mesma pergunta mais duas vezes. E respondi como se responde um burguesinho branquelo, descendente da elite branca e opressora dos negros:

“Estou andando rápido porque estou com pressa! Não estou achando nada de você! Pegue seu caminho, que eu pego o meu!”

E acelerei meu Adidas (burguesinho branquelo, não tinha preocupações com a sola). Mas ele também acelerou o passo. Não me importei. A sobrevivência deu lugar ao desafio. “Um menino desses não vai desviar meu caminho”, prometi a mim. E não desviou. Mesmo arranhando minha barriga com uma faca de cozinha e pressionando o meu pescoço com a mesma. A faca, diga-se de passagem, subiu da barriga pro pescoço por um motivo muito simples: perguntado sobre meus pertences, indisposto a lhe dar um centavo, disse que tinha um maço de cigarros no bolso. E ouvi, num português cheio de cracks emitido por uma língua mole:

“Que você tá achando que sou, mano, pra me oferecer cigarro?”

Era final de outubro de 2008. Ainda não havia uma lei que me nivelasse a ele. E, por isso, respondi:

“Nada, se eu fumo por que você não pode fumar?”

Assim como para os governadores José Serra, Sérgio Cabral e o prefeito de Curitiba, Beto Richa, para o mulatinho desbotado, o cigarro era algo inaceitável. Pela sugestão, fui castigado com uma faca afundando no meu pescoço, seguida de ameaças de morte durante quinze minutos, quando, do que havia na minha mochila, restaram apenas dois livros. Ao fim de tudo, não havia um policial na rua, uma blitz, alguém que me pudesse encaminhar a uma delegacia. Houve uma mulher que passou na minha frente, quando eu estava sentado na viela, abrindo minha mochila, entregando meus pertences ao Mulatinho, com a faca no limite tênue entre a minha vida e morte – a simples maneira de ele prover seu vício. Ela passou como se tivesse visto algo tão banal como um mendigo sentado em frente ao portão de sua casa.

Quase um ano se passou desde aquele dia. Hoje, tremo levemente e olho para os lados quando acendo um cigarro na rua. Ando com pressa, meu Adidas tem menos sola. Mesmo assim, tomo cuidado, não posso esbarrar em ninguém, com um cigarro na mão. Não. As pessoas podem se assustar, como eu, em 28 de outubro de 2008, uma quinta-feira. E estarão certas, como eu estava, em outubro de 2008. Mas estarão amparadas, ao contrário de mim, naquele dia. Poderão me delatar para a polícia. Encontrarão um mutirão para me levar à polícia. Poderão, inclusive, se juntar ao Mulatinho Desbotado, na luta, no assassinato de branquelinhos burguesinhos fumantezinhos como eu. Isso se ele, o Mulatinho, já não estiver morto. É um viciado. Assim como eu. Não, seria injusto dizer isso. Nós não somos iguais. Eu sou pior. Sou branquelo, burguesinho, não deveria ser fumante. Ele, mulatinho, desbotadinho, pobrezinho, sim, pode inalar o vaporzinho que faz estalinho numa latinha. Os governantes e a polícia deixam. O problema é o cigarro. Este, sim, é o grande Mal da Sociedade.

Jornalismo Literário


"O texto jornalístico deveria ser sempre literário".


Foi isso que disse um dos jornalistas considerado pioneiro na literariedade do ofício jornalístico. Claro, aqueles que o consideram assim não conheceram a obra de Euclides da Cunha e João do Rio que, no Brasil, uniram jornalismo e literatura muito tempo antes.


Isso, porém, não tira a qualidade literária do autor de "O Reino e o Poder", que conta a história e os bastidores do jornal The New York Times, "A Mulher do Próximo", sobre as mudanças dos Estados Unidos após a revolução sexual, e "Vida de Escritor", seu último livro, em que narra fatos e apresenta textos de sua carreira como jornalista literário. (os títulos estão devidamente traduzidos para este editorial.)


Ele esteve no Brasil recentemente. Teve de trocar de quarto, na pousada em que se hospedou em Paraty, para a FLIP, porque no armário não cabiam os ternos feitos sob medida para ele. Gay Talese (na foto ao lado). O homem mais elegante da FLIP. O homem da segunda melhor palestra da FLIP. O homem que considera a imprensa contemporânea problemática demais para ainda discutirmos sobre a internet.


Ah, a internet. Sempre ela. Seria ela a grande vilã da imprensa? Eu não abro mão do jornal impresso e outros artigos da "velha mídia" (não entendo o porquê de tanta maldade; criar um termo desses...). E não abro mão de depurar meu texto. Por isso, aqui estou. Num novo blog. Na internet. Mas não para falar sobre ela. Para depurar meu texto. E me comunicar.