sábado, 7 de novembro de 2009

O Velho Artista


Quando um grande ator brasileiro muito velho morre, o povo, com sua erudição, diz uma dessas três coisas:
– Ah, que pena. Gostava dele. Qual era aquela novela que ele fazia?
– Ele ainda estava vivo? Achei que já tinha morrido! Ele não fazia mais novela, né? Devia ser um frustrado. Estava na hora de morrer mesmo.
– Quem é esse? Que novela ele fez?

A explicação para isso é óbvia: a falta de memória do brasileiro-médio. Mas qual a origem desse mal?
Não se trata de uma anomalia coletiva gerada pela junção das “três raças tristes” que formaram o povo brasileiro – os portugueses, índios e negros africanos.

A falta de memória do brasileiro advém da falta de material para compô-la. O cidadão-médio – ou o cidadão-sem-memória – nunca abriu um jornal na vida e, na internet, frequenta apenas as redes sociais. Na escola, achava a aula de História uma estupidez, afinal, se tudo aquilo já passou, para que aprendê-lo? Teatro, para a maioria que o frequenta (nem 10% da população), é pretexto pra ver este ou aquele artista que está na novela e tirar foto no celular depois. Cinema é aquilo que passa, direto dos Estados Unidos, depois da novela, na segunda-feira, e depois do “Zorra Total”, no sábado. E também “aquilo” cheio de efeitos especiais. Com relação à leitura, se excluídos os livros didáticos, não haverá um livro lido por pessoa ao longo de um ano. (Na Alemanha, a média de livros por habitante é de 30 ao ano.)

Cada qual em sua morte, Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Autran, Claudio Correa e Castro e Raul Cortez tiveram seu legado maltratado por esses comentários, após o anúncio de sua morte, sob a expressão sisuda de Fátima Bernardes e William Bonner.

O mesmo ocorreu na noite de hoje com o anúncio da morte de um dos nossos primeiros galãs e o único cineasta brasileiro a receber a Palma de Ouro em Cannes, pela adaptação da peça “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, para o cinema.

Nascido em Salto, no interior de São Paulo, Anselmo Duarte dividiu-se, nos anos 50, como galã principal das chanchadas da Atlântida, no Rio de Janeiro, e dos melodramas da Vera Cruz, em São Paulo. Alto, de porte imponente, Anselmo Duarte fez um lindíssimo par com Tônia Carrero no filme “O Tico-Tico no Fubá” (Vera Cruz), nos anos 50, e ainda mais lindo com a atriz Ilka Soarez, também da década de 50, só que na vida real. Desprezava seu trabalho como ator, mas era orgulhoso da própria beleza. Formado em Economia, o garoto pobre que umidecia as telas do cinema em Salto para que elas não se queimassem, dada a maneira como eram feitas as projeções, queria, mesmo, era ser cineasta.

Estreou como diretor no filme “Absoltamente certo”, uma sátira sobre os programas de perguntas e respostas que excitavam a pequena massa televisiva dos primeiros anos de TV. O filme fora um grande sucesso e é obrigatório aos nostálgicos de plantão, que afirmam, com veemência e equívoco, em programas como o “Ver TV”, da TV Brasil (vulgo, a “TV de Lula” ou a “TV que ninguém vê”), como era boa a programação da TV Tupi ou da Record nos tempos da família Machado de Carvalho.

A Palma de Ouro veio em seguida, com “O Pagador de Promessas”, seu maior sucesso, cuja adaptação para o cinema desagradou Dias Gomes – tão famoso por suas brigas e desafetos quanto Anselmo Duarte.

Mas a opinião do dramaturgo-retirante-marxista não conta. O que importa é o fato de que, para o júri do Festival de Cannes, o trabalho de Anselmo Duarte era melhor que o de Antonioni e Buñel, cineastas que concorreram junto dele em 1962, considerado o mais concorrido da história do prêmio.

Anselmo, que havia passado uma temporada na Europa no início dos anos 60, havia acompanhado com acuidade dois festivais de Cannes. Ao concorrer, em 1962, com um filme de estética clássica e tom político local, sabia que estava apresentando uma película que agradaria ao júri.

Seu último filme foi em 1977, “O Crime de Zé Bigorna”, que contava a história de um homem manipulado em sua ingenuidade e simplicidade pela elite política de sua cidade. A mesma premissa seria utilizada por Lauro César Muniz, em 1998, na TV Globo, para a criação da novela “O Salvador da Pátria”, protagonizada por Lima Duarte no papel do eterno Sassá Mutema (importante dizer que Lima, ao morrer, sofrerá o mesmo tipo de comentário que seus pares). Anselmo filmou também “Vereda da Salvação”, seu filme preferido, porém sem sucesso. O filme “Os Trombadinhas”, estrelado por Pelé. O último sucesso fora com “Quelé de Pagéu”, em 1969, que teve como ator principal Tarcisio Meira.

A partir dos anos 60, Anselmo começou a levar uma vida discreta, sustentada pelos lucros de “O Pagador de Promessas”, que ele ordenou para que durassem até o fim de sua vida – supunha morrer no início do século XXI, o que aconteceu. Filmava pouco e fazia pequenos papéis como ator, em participações especiais. Tinha uma chácara na região de Itu e Salto e lá ficava boa parte do tempo, acompanhado de sua Palma de Ouro, de suas memórias e de seus cigarros. Fumou e bebeu até os 89 anos, exatamente até o dia 16 de agosto de 2009, quando sofreu uma parada cardíaca. Passou por tratamentos, melhoras e pioras até falecer às 01h30 do dia 07 de novembro de 2009. Antes do infarto, em agosto, ainda com saúde o suficiente para manter a altivez do porte e dos passos, freqüentava restaurantes com assiduidade, sobretudo em Itu, cidade vizinha à Salto.

Eu o encontrei duas vezes. Aos 16 anos, num restaurante italiano da cidade, onde ele estava sentado a uma mesa logo acima da minha, na ala de fumantes (outros tempos, em que se podia fumar em restaurantes). Esta foi a segunda vez que o vi. A primeira em 1-11-94. Ele já possuía cabelos brancos e mantinha o porte da juventude. Eu tinha cabelos castanhos e bastante lisos, cortados em “tigelinha”, bochechas gordas e levemente caídas, a pele perfeita e uma irreverência natural. Gostava de desenhos animados da Disney e revistas em quadrinhos do Tio Patinhas – sobretudo quando a Maga Patalógika tentava roubar sua moedinha número 1. Queria ser desenhista da Disney – a pretensão foi sempre algo inerente a mim – e não jornalista, escritor, dramaturgo e roteirista. Fixei-me em Anselmo sem saber o que era “Palma de Ouro”, Cannes, “O Pagador de Promessas”, cineasta ou galã. E, desprovido de qualquer superego, me aproximei várias vezes de sua mesa. Ele gostou de mim. Tanto que, num cartãozinho da pizzaria, escreveu, numa letra desenhada e grande, uma das mais belas que já vi:

“Danilo, dotado de virtudes artísticas, é a mais significante visão de pureza da noite de 1-11-94. Com a amizade do velho artista, Anselmo Duarte.”
O autógrafo está plastificado e encaixado na minha escrivaninha. Me faz companhia enquanto escrevo. Caso seus filmes se percam, como costuma acontecer no Brasil, esta pequena parte de sua memória estará para sempre guardada. Mesmo depois da minha morte.
(Por conta de um trabalho que me foi encomendado para ser entregue em fevereiro de 2010, comunico a vocês que só voltarei a postar a partir de março do ano que vem. Até lá, sigam-me no Twitter @danthomaz).

3 comentários:

  1. Um autógrafo que mereça ser plastificado e guardado é uma das melhores heranças que um artista pode deixar.

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  2. Dan obrigada por essa honoravel contribuição a
    memória da arte!!! e obrigada por resgatar a dignidade do jornalismo!!!

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  3. É por essas e outras que o admiro e o respeito.

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