quarta-feira, 12 de maio de 2010

Tudo bem. Em 140 caracteres


Perdi alguns minutos hoje comparando o português e a capacidade de síntese de Serra e Dilma no Twitter. É gritante a diferença entre ambos. Raro o tweet de Dilma que não tenha abreviações - algumas indevidas, como “vc” (coisa de adolescente que não lê nada que não seja conversa de MSN) -, vírgulas sem propósito - se ela errasse menos nas vírgulas, não precisaria criar abreviações - e uma completa falta de propriedade sobre qualquer assunto tratado, inclusive sua própria campanha eleitoral.

Outro dia, ela disse que ganhara o livro "As brasas", do húngaro Sandór Márai. Não comentou nada a respeito. Ou não leu ou começou a ler e foi fazer esteira ou desistiu logo de cara. É um livro denso, impróprio para um neurônio solitário como o dela.

Serra, por sua vez, demonstra traquejo no uso da mídia social. É bem humorado, comunicativo, diversifica os assuntos, fala com propriedade - ainda que o meio (Twitter) seja superficial - sobre cinema, música e literatura e abre brechas para que vejamos a pessoa por trás do arquétipo político.

Mas na rádio ele não tem – ou não teve – desempenho melhor que a candidata de Lula. Enquanto esta perde-se em números que seu neurônio solitário não consegue decorar, Serra, ao ser questionado pela jornalista Miriam Leitão, na CBN, a respeito da autonomia no Banco Central (se ela seria mantida ou não, já que ele tem fama de centralizador), reagiu com uma ira típica da Dilma em tempos anteriores à pré-candidatura.

A jornalista fez uma questão que interessa a todos que sabem da existência do Banco Central - cerca de 0,2333% da população brasileira. Não cabe a ele julgar se essa é uma boa pergunta ou não. Cabe a ele, como candidato ao mais alto posto do país, respondê-la - e com delicadeza.

Tampouco cabe a um pretende do maior cargo do Executivo dizer que não raciocina bem de manhã, que sofre de mau humor nesse período do dia. Presidente da República não tem horário de expediente. Os problemas não têm horário para começar ou acabar.

Portando-se daquela maneira com a jornalista, Serra, além da dúvida a respeito de qual será sua postura frente ao BC, deixou a seguinte questão: é falso ou destemperado?

sábado, 1 de maio de 2010

Malditas estagiárias de calcanhar sujo

Elas não devem saber, mas quem inventou o termo, em homenagem à geração de garotas feministas e progressistas com muito discurso captado das passeatas e poucas ideias na cabeça, foi Nelson Rodrigues. (Elas não devem saber, mas ele era jornalista além de dramaturgo, escritor e cronista esportivo).

Nelson era um nostálgico dos tempos da velha imprensa, dos textos estilizados, subjetivos, pouco afeitos à objetividade e imparcialidade instituídos pelo copydesk, que despiu de adereços literários a narrativa noticiosa, instituiu-lhe uma ordem-padrão (conhecida no meio jornalístico como pirâmide invertida) e transformou a objetividade, a imparcialidade e o apartidarismo em características essenciais ao repórter, como se este fosse um mero gravador de notícias e não uma pessoa. A esta geração pós-copydesk, Nelson deu a alcunha de “Os idiotas da objetividade”. Poderia tê-los chamado de “Os hipócritas da objetividade”. Ele sabia que objetividade não era o forte de seus pares.

Sem precisar escrever bem e pensar, os idiotas da objetividade tornaram-se em pouco tempo maioria nas redações. E abriram espaço para um novo tipo de idiota, este do sexo feminino: as estagiárias de calcanhar sujo: garotas de classe-média, influenciadas pelos movimentos feministas e pelas ideias de esquerda, com muito discurso de passeata estudantil para bradar e poucas ideias na cabeça. Nelson não se conformava com as tolices e a petulância dessas garotas sempre em busca do senso-comum da esquerda da época. Teria sofrido ainda mais se soubesse que, um dia, elas seriam maioria nas redações e transformariam a tolice, a busca pelo senso-comum e os calcanhares sujos em regras básicas do jornalismo do século XXI.

Se antes os clichês proferidos por elas eram catados nas passeatas, hoje o são em seriados como Sex and the city. A ausência de ideias e a pouca capacidade de raciocínio é a mesma da década de 70. Se antes subservientes à esquerda e ao movimento feminista, hoje o são ao que dizem os assessores de imprensa. Têm pouco apreço à apuração de notícias. Esforçam-se para escrever de maneira telegráfica, têm dificuldades – sérias dificuldades – em não abreviar palavras como “você”, “tudo” e “também”.

O maior espanto delas é quando aparecem rapazes de bom nível cultural, com um discurso oriundo de ideias estabelecidas e em constante mutação, apreço pela língua-pátria (e não apenas pelo inglês, embora o fale com fluência) e uma visão horizontal a respeito dos fatos e do próprio Jornalismo que aparecem, vez ou outra, numa redação em busca de um emprego. Elas o olham com espanto. “O que este ser está fazendo aqui?”, pensam enquanto digitam textos telegráficos tirados de declarações no Twitter. “O que ele pensa que é isso aqui?” “Ele nunca pisou numa redação?”

O rapaz se apresenta à ex-estagiária de calcanhar sujo, agora jornalista de calcanhar sujo. Ele veste uma camisa de manga comprida com as mangas arregaçadas; ela veste-se como uma modelo da Festa do Peão de Barretos. Apresenta-lhe seu portfólio com artigos, reportagens, crônicas e textos noticiosos; fala dos cursos que fez fora da faculdade (Literatura, cinema e economia); discorre sobre o que acredita ser um bom jornalismo, afirma e reafirma o seu desejo em trabalhar. Ela não entende o que ele faz ali, por que ele quer ser jornalista, por que ele estudou economia, literatura e cinema, por que foi de camisa para a entrevista. É politicamente correta demais para chamá-lo de “Múmia”, como Nelson Rodrigues costumava chamar-se. Diz apenas que ele tem “Jeito de jornalista antigo” e coloca na redação mais uma estagiária de calcanhar sujo, uma garota de discurso desprovido de ideias e entremeado por gírias, texto telegráfico com abreviações de conversas de MSN, subserviência aos assessores de imprensa e chapinha no cabelo.

O rapaz vai embora dali como se não tivesse direito de fazer parte daquele universo. Sobram-lhe ideias. Faltam-lhe calcanhares sujos.

segunda-feira, 29 de março de 2010

O encontro de dois homens


Tinha um compromisso marcado para às 13 horas na avenida Paulista. Como ainda eram 12h30, resolvi passar na Livraria Cultura do Conjunto Nacional e folhear uns livros. Pois bem: olho o biombo principal, desço a rampa e me deparo com quem? José Ribamar Ferreira de Araújo da Costa, o homem comum que veste desde o dia 2 de fevereiro de 1959 o homem incomum: José Sarney. Difícil dizer qual dos dois Josés estava na livraria. "É o Sarney", decidi. O Sarney: vestido num paletó e calça azul-marinho, uma camisa escura e xadrez e um sapato preto de aspecto amassado e abatido. “Não vou perder essa”, pensei. E fui até ele.


Sarney estava de costas para mim. Atrás dele, um homem mulato, de cabelos curtos e encaracolados, vestido num paletó creme, carregando uma série de pastas, papeis e uma caneta. Coloquei a mão no ombro de Sarney e, com uma efusividade repleta de ironia, disse:


– Ô senador! – ele virou-se para mim. Apertei a mão dele e comecei a balançá-la. Assim ficamos durante toda a conversa. Olhei bem nos seus olhos - ao que ele correspondeu - e reparei no seu aspecto: ele tem a pele grossa, de aspecto oleoso, o nariz e as bochechas vermelhas. As mãos, o pescoço e a careca são de cor morena, morena clara. O cabelo tem a raiz branca e aumenta de tonalidade conforme se distancia dela: do branco vai pro cinza claro, do cinza claro para o cinza escuro, deste para o preto. Com o bigode acontece a mesma coisa.


– Olá. – disse ele, um homem trêmulo, contido e tenso, desprovido de qualquer populismo ou encenação, incapaz de ser simpático. Parece alguém à espera de uma ofensa ou verdade inconveniente. Parece alguém cansado, baqueado pela tensão causada por essa espera.


– Sempre te mando e-mail. O senhor nunca responde – disse eu, sem revelar o real conteúdo dos e-mails, óbvio para qualquer homem comum.

Ele me perguntou em qual e-mail eu o enviava, eu disse que no do UOL, quase toda sexta, após ler sua coluna na Folha. Com a mão balançada pela minha, ele perguntou meu nome. Respondi:

– Danilo.

O assessor fingiu-se interessar em manter uma proximidade entre o Homem Incomum (ali tentando portar-se, desejando mais do que nunca ser um mortal como os outros, mas sem problemas financeiros) e um jovem eleitor brasileiro - que vota em São Paulo. O assessor repetiu meu nome, como se fosse ficar atento aos meus e-mails. Voltei-me a Sarney:

– Fiquei sabendo que o senhor vai operar hoje.

– Sim.

– Espero que ocorra tudo bem.

– Obrigado.

Soltei a mão de Sarney.

– Assim o senhor pode voltar com todo gás pro Senado!
– É… – disse ele, mais trêmulo, constrangido e incomodado que nunca, pronto a dar-me as costas.

– Vamos botar ordem naquela casa! – disse eu, bem alto.

Sarney acenou e virou-se de costas para mim, acompanhado por seu assessor, que também despediu-se. Mas eu decidi segui-lo. Ver o que o Homem Incomum iria fazer ao tentar-se passar por homem comum.

Sarney e seu assessor foram até à revistaria. Ficaram um bom tempo ali. O assessor guardava o seu lugar no caixa. Sem ser reconhecido, ou completamente ignorado por todos, Sarney ia, pegava uma revista, colocava-a sobre o caixa, voltava, pegava outra, colocava sobre o caixa. O assessor pagou pelas revistas - com o nosso dinheiro, provavelmente. Contou moedinhas - não sei se por necessidade ou dissimulação.

Ao ver que os dois estavam saindo da revistaria, fingi que via uns livros na estante mais próxima e disse:

– Não deixa de ver meus e-mails, hein!

Sarney acenou a contragosto e foi embora junto de seu assessor.

Durante toda essa jornada, que durou cerca de 20 minutos, fui acompanhado por um pensamento, “Que homem desagradável". E eu sei por quê. Não deve ser fácil para José Ribamar Ferreira de Araújo da Costa suportar o peso de José Sarney.

sexta-feira, 12 de março de 2010

A façanha dos Sarney




Mesmo apoiada por Lula, candidato à reeleição em 2006 com ampla vantagem que se consumou, e detendo o monopólio da comunicação do estado do Maranhão, a então senadora Roseana Sarney perdeu, no segundo turno, as eleições para o governo do estado em que sua família, além de dona de terras, é dona do mar e tem seu nome carimbado em avenidas, travessas, ruas, vilas e prédios públicos do Maranhão. O vencedor do pleito fora Jackson Lago (PDT), disposto a enterrar a oligarquia Sarney, assim como este pretendia fazer – e fez – com Victorino Freire, antigo oligarca maranhense, de quem Sarney fora aliado na juventude (embora, hoje, renegue isso com a mesma veemência com que renega sua desonestidade).



Três vezes prefeito de São Luis, capital do Maranhão, Jackson Lago vencera Roseana Sarney no segundo turno das eleições estaduais de 2006 com 52% dos votos válidos. (Pesquisa Ibope encomendada pela TV Mirante, filial da TV Globo pertencente à família Sarney no Maranhão, apontava a vitória para Roseana no 2º turno das eleições). A população comemorou a derrota de Roseana (mais que a vitória de Lago).



A tensão entre o novo e o antigo governo no estado já era prevista desde a eleição de Jackson Lago, que detinha minoria na Assembleia Legislativa. Logo, a coligação derrotada entrou com um pedido de cassação do mandato do governador eleito, alegando obstrução da Legislação Eleitoral por meio do uso da máquina pública na campanha eleitoral, doações de cestas básicas e kits salva-vidas para compra de votos na região de São Marcos, em São José de Ribamar; transferência de recursos públicos para uma associação de moradores do Grajaú; distribuição de combustível e material de construção para os eleitores; 17 mil reais para compras de votos e favorecimento do candidato Lago pelo então governador José Reinaldo Tavares, do PMDB, ex-aliado do clã Sarney. Em sua defesa, Lago afirmou que não havia nos autos provas concretas, mas alegações. A sua defesa, na época da cassação, disse que "a força eleitoral de Jackson Lago se manifestou onde não houve convênio nenhum". (Em São Luis, o maior colégio eleitoral do Maranhão, Lago recebera 66% dos votos. Não consta nenhuma denúncia envolvendo compra de votos na capital do Maranhão).



Cassado pelo STF em 16 abril de 2009, Jackson Lago deixou para Roseana Sarney o Palácio dos Leões (Sede do Governo do Estado do Maranhão) e suspeitas de gastos superfaturados com aviões, além da dúvida acerca do uso da máquina pública e de compras de votos para elerger-se, mesmo que ele tenha sido condenado. É estranho duvidar de quem é condenado; pior ainda é duvidar de quem julga. Mas a situação pede, pois, além da declaração de Lago e seu advogado, citadas acima, a defesa do acusado tivera direito a apenas seis testemunhas no processo. E a família Sarney mantém relações estreitas com alguns membros do STF.



Em 19 de março de 2009, o novamente presidente do Senado José Sarney foi ao Amapá por ocasião da festa do padroeiro do estado, São José. Lá, segundo o livro “Honoráveis Bandidos”, do jornalista Palmério Dória, encontrou-se com o presidente do STF, Gilmar Mendes. Um mês depois, Lago e seu vice Luis Carlos Porto estavam cassados. (Fato inédito. À renúncia de Collor, assumira o cargo seu vice, Itamar Franco e, na crise do “mensalão do DF”, à prisão de Arruda, assumiu, por pouco tempo, seu vice, Paulo Octavio). O relator do processo fora o ministro do STF Eros Grau, a quem Sarney prometera uma cadeira de imortal na ABL assim que um dos imortais vivos morrer.



Pai e filha cometeram uma façanha política maior que o fato de Sarney ostentar título de imortal na ABL. Valeram-se da Lei Eleitoral, que proíbe, dentre outras coisas, a compra de votos (por meio de cestas básicas, brinquedos, dinheiro em espécie e afins) e o uso da máquina pública para favorecer candidato, para voltar ao poder de 40 anos no estado do Maranhão. Poder que rendeu à família o monopólio da comunicação no estado – além da TV Mirante, são donos do jornal Estado do Maranhão, da Rádio Mirante AM e FM; no interior do estado, são donos de outras 35 emissoras de rádio e 13 retransmissoras da TV Mirante – e que iniciou-se com a necessidade do governo militar – em 1965 – em investir em infraestrutura energética na região amazônica nordestina com a construção da usina de Boa Esperança, no rio Parnaíba, que corta os estados do Tocatins e do Maranhão, e ter alguma força regional que os ajudasse a controlar o projeto. A Boa Esperança é apenas o início do domínio da família sobre o setor elétrico brasileiro. A ela, seguiram a superfaturada construção da hidrelétrica de Tucuruí, o comando da Eletronorte, o contrato com a empresa americana de alumínio Alumar (que, para produzir o alumínio necessita de muita energia; seus contratos foram feitos com a família Sarney) e contratos de energia com a construtora Camargo Côrrea. O domínio no setor é consolidado com Sarney na presidência da República e mantido até hoje. Silas Rondeau e Edison Lobão – respectivamente, o último e o atual ministro das Minas e Energia – foram indicados por Sarney, que, junto de Lobão, detém o comando sobre a Eletrobrás, que hoje, assim como a Petrobrás, opera sem necessitar de licitação (muito conveniente para os dois).



Além da energia e das comunicações, a família Sarney é dona da Ilha de Capuru (e não apenas de sua porção de terra, como das 15 praias que a envolvem, segundo o livro “Honoráveis Bandidos”), de uma casa de R$ 4 milhões em Brasília, tomou a si o Convento das Mercês (de 1645, erguido pelo Padre Antonio Vieira, localizado em São Luís) e o transformou Acervo Memorial José Sarney (até fechar, por conta dos escândalos envolvendo a família em 2009), apoderou-se do Senado por meio da indicação de Agaciel Maia para diretoria-geral e da Justiça – não apenas no caso da cassação de Jackson Lago, mas também no da censura prévia ao jornal O Estado de São Paulo – determinada pelo desembargador Dácio Vieira, do TJ-DF, que chegou ao cargo por meio de Sarney.



Há mais de sete meses o jornal está proibido de publicar matérias sobre a Operação Boi Barrica, da PF, que investiga as empresas de Fernando Sarney. Em 2009, o Estadão, além da Boi Barrica, revelou casos de nepotismo (atos secretos foram utilizados para nomear duas sobrinhas, um neto e afilhados políticos), patrimonialismo (a empresa de José Adriano Cordeiro Sarney, neto do senador, operava um esquema de crédito consignado desde 2007) e clientelismo (como as trocas de favores entre Sarney e Agaciel, reveladas por meio de grampos da PF) envolvendo o senador José Sarney. As denúncias foram devidamente arquivadas pelo Conselho de Ética do Senado, em 18 de agosto de 2009. A oposição recorreu ao STF que, em 31 de agosto de 2009, optou pelo arquivamento das mesmas.



Em 10 de dezembro, por 6 votos a 3, o jornal O Estado de São Paulo é mantido sob censura. Gilmar Mendes e Eros Grau fazem parte dos 6 ministros que optaram por desobedecer o Art. 5º/ parágrafo IX da Constituição de 1988 (“IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;), carta que eles deveriam guardar.




Fontes:
DÓRIA, Palmério. “Honoráveis Bandidos”. Geração Editorial. 1ª edição. 2009;
Jornais: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo. (Versão imprensa e online);
Site jornal O Imparcial (do Maranhão). (www.oimparcial.com.br);
Site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): (www.tse.gov.br/internet/eleicoes/2006);
Código Eleitoral Brasileiro.

sábado, 7 de novembro de 2009

O Velho Artista


Quando um grande ator brasileiro muito velho morre, o povo, com sua erudição, diz uma dessas três coisas:
– Ah, que pena. Gostava dele. Qual era aquela novela que ele fazia?
– Ele ainda estava vivo? Achei que já tinha morrido! Ele não fazia mais novela, né? Devia ser um frustrado. Estava na hora de morrer mesmo.
– Quem é esse? Que novela ele fez?

A explicação para isso é óbvia: a falta de memória do brasileiro-médio. Mas qual a origem desse mal?
Não se trata de uma anomalia coletiva gerada pela junção das “três raças tristes” que formaram o povo brasileiro – os portugueses, índios e negros africanos.

A falta de memória do brasileiro advém da falta de material para compô-la. O cidadão-médio – ou o cidadão-sem-memória – nunca abriu um jornal na vida e, na internet, frequenta apenas as redes sociais. Na escola, achava a aula de História uma estupidez, afinal, se tudo aquilo já passou, para que aprendê-lo? Teatro, para a maioria que o frequenta (nem 10% da população), é pretexto pra ver este ou aquele artista que está na novela e tirar foto no celular depois. Cinema é aquilo que passa, direto dos Estados Unidos, depois da novela, na segunda-feira, e depois do “Zorra Total”, no sábado. E também “aquilo” cheio de efeitos especiais. Com relação à leitura, se excluídos os livros didáticos, não haverá um livro lido por pessoa ao longo de um ano. (Na Alemanha, a média de livros por habitante é de 30 ao ano.)

Cada qual em sua morte, Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Autran, Claudio Correa e Castro e Raul Cortez tiveram seu legado maltratado por esses comentários, após o anúncio de sua morte, sob a expressão sisuda de Fátima Bernardes e William Bonner.

O mesmo ocorreu na noite de hoje com o anúncio da morte de um dos nossos primeiros galãs e o único cineasta brasileiro a receber a Palma de Ouro em Cannes, pela adaptação da peça “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, para o cinema.

Nascido em Salto, no interior de São Paulo, Anselmo Duarte dividiu-se, nos anos 50, como galã principal das chanchadas da Atlântida, no Rio de Janeiro, e dos melodramas da Vera Cruz, em São Paulo. Alto, de porte imponente, Anselmo Duarte fez um lindíssimo par com Tônia Carrero no filme “O Tico-Tico no Fubá” (Vera Cruz), nos anos 50, e ainda mais lindo com a atriz Ilka Soarez, também da década de 50, só que na vida real. Desprezava seu trabalho como ator, mas era orgulhoso da própria beleza. Formado em Economia, o garoto pobre que umidecia as telas do cinema em Salto para que elas não se queimassem, dada a maneira como eram feitas as projeções, queria, mesmo, era ser cineasta.

Estreou como diretor no filme “Absoltamente certo”, uma sátira sobre os programas de perguntas e respostas que excitavam a pequena massa televisiva dos primeiros anos de TV. O filme fora um grande sucesso e é obrigatório aos nostálgicos de plantão, que afirmam, com veemência e equívoco, em programas como o “Ver TV”, da TV Brasil (vulgo, a “TV de Lula” ou a “TV que ninguém vê”), como era boa a programação da TV Tupi ou da Record nos tempos da família Machado de Carvalho.

A Palma de Ouro veio em seguida, com “O Pagador de Promessas”, seu maior sucesso, cuja adaptação para o cinema desagradou Dias Gomes – tão famoso por suas brigas e desafetos quanto Anselmo Duarte.

Mas a opinião do dramaturgo-retirante-marxista não conta. O que importa é o fato de que, para o júri do Festival de Cannes, o trabalho de Anselmo Duarte era melhor que o de Antonioni e Buñel, cineastas que concorreram junto dele em 1962, considerado o mais concorrido da história do prêmio.

Anselmo, que havia passado uma temporada na Europa no início dos anos 60, havia acompanhado com acuidade dois festivais de Cannes. Ao concorrer, em 1962, com um filme de estética clássica e tom político local, sabia que estava apresentando uma película que agradaria ao júri.

Seu último filme foi em 1977, “O Crime de Zé Bigorna”, que contava a história de um homem manipulado em sua ingenuidade e simplicidade pela elite política de sua cidade. A mesma premissa seria utilizada por Lauro César Muniz, em 1998, na TV Globo, para a criação da novela “O Salvador da Pátria”, protagonizada por Lima Duarte no papel do eterno Sassá Mutema (importante dizer que Lima, ao morrer, sofrerá o mesmo tipo de comentário que seus pares). Anselmo filmou também “Vereda da Salvação”, seu filme preferido, porém sem sucesso. O filme “Os Trombadinhas”, estrelado por Pelé. O último sucesso fora com “Quelé de Pagéu”, em 1969, que teve como ator principal Tarcisio Meira.

A partir dos anos 60, Anselmo começou a levar uma vida discreta, sustentada pelos lucros de “O Pagador de Promessas”, que ele ordenou para que durassem até o fim de sua vida – supunha morrer no início do século XXI, o que aconteceu. Filmava pouco e fazia pequenos papéis como ator, em participações especiais. Tinha uma chácara na região de Itu e Salto e lá ficava boa parte do tempo, acompanhado de sua Palma de Ouro, de suas memórias e de seus cigarros. Fumou e bebeu até os 89 anos, exatamente até o dia 16 de agosto de 2009, quando sofreu uma parada cardíaca. Passou por tratamentos, melhoras e pioras até falecer às 01h30 do dia 07 de novembro de 2009. Antes do infarto, em agosto, ainda com saúde o suficiente para manter a altivez do porte e dos passos, freqüentava restaurantes com assiduidade, sobretudo em Itu, cidade vizinha à Salto.

Eu o encontrei duas vezes. Aos 16 anos, num restaurante italiano da cidade, onde ele estava sentado a uma mesa logo acima da minha, na ala de fumantes (outros tempos, em que se podia fumar em restaurantes). Esta foi a segunda vez que o vi. A primeira em 1-11-94. Ele já possuía cabelos brancos e mantinha o porte da juventude. Eu tinha cabelos castanhos e bastante lisos, cortados em “tigelinha”, bochechas gordas e levemente caídas, a pele perfeita e uma irreverência natural. Gostava de desenhos animados da Disney e revistas em quadrinhos do Tio Patinhas – sobretudo quando a Maga Patalógika tentava roubar sua moedinha número 1. Queria ser desenhista da Disney – a pretensão foi sempre algo inerente a mim – e não jornalista, escritor, dramaturgo e roteirista. Fixei-me em Anselmo sem saber o que era “Palma de Ouro”, Cannes, “O Pagador de Promessas”, cineasta ou galã. E, desprovido de qualquer superego, me aproximei várias vezes de sua mesa. Ele gostou de mim. Tanto que, num cartãozinho da pizzaria, escreveu, numa letra desenhada e grande, uma das mais belas que já vi:

“Danilo, dotado de virtudes artísticas, é a mais significante visão de pureza da noite de 1-11-94. Com a amizade do velho artista, Anselmo Duarte.”
O autógrafo está plastificado e encaixado na minha escrivaninha. Me faz companhia enquanto escrevo. Caso seus filmes se percam, como costuma acontecer no Brasil, esta pequena parte de sua memória estará para sempre guardada. Mesmo depois da minha morte.
(Por conta de um trabalho que me foi encomendado para ser entregue em fevereiro de 2010, comunico a vocês que só voltarei a postar a partir de março do ano que vem. Até lá, sigam-me no Twitter @danthomaz).

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O Homem de Itu



1998: o escândalo Clinton-Lewinsky dá uma nova motivação ao puritanismo americano, eternamente em busca de um inimigo a combater. Ao longo da história da democracia mais antiga do mundo, pelas mãos do puritanismo, foram-se os índios, os ingleses, a aristocracia do Velho Sul e o comunismo. No final da década de 90, porém, a economia ia bem e faltavam três anos para os ataques de 11 de setembro, que selaria de uma vez por todas o terrorismo islâmico como o novo inimigo da ideologia puritana. Que melhor inimigo a combater que não o bom e velho sexo? Ou melhor, a sexualidade alheia?
Foi esse contexto que o escritor Philip Roth escolheu para fechar sua trilogia sobre a América pós-guerra, marcada pelos conflitos da Coreia e do Vietnã, a liberdade sexual e a ascensão de grupos sociais como o Movimento Negro, que, de mãos dadas com a elite intelectual do pais, instituíram o politicamente correto - inicialmente, uma maneira de determinar como minorias injustiçadas e perseguidas ao longo da história deveriam ser chamadas. Hoje, um meio de coibir a expressão artística, o debate de ideias, a produção intelectual, o humor e o pensamento.

A Marca Humana (2000) – que fecha a trilogia composta por Pastoral Americana (1997) e Casei com um comunista (1998) – narra a história de Coleman Silk, um professor/ decano demitido da faculdade Athena, que modernizou, por referir-se a dois alunos que nunca foram às suas aulas como spookies (o equivalente a zumbis em português). Os alunos, que ele não conhecia pessoalmente, para seu azar, eram negros e foram aproveitados pelos inimigos de Silk para tirá-lo da faculdade, sob alegação de racismo.

Fora da Athena, tempo depois, Coleman, homem libertário e de vigor intelectual, revive intensamente a sexualidade por meio de um relacionamento com a faxineira Faunia Farley – trinta anos mais jovem e muito mais pobre do que ele – e do uso do Viagra. Em seu caso de alto teor sexual com Faunia, o ex-decano da Athena, novamente, age na contrapartida das regras vigentes nos EUA do final do século XX. E é punido por isso, acusado, agora, de abuso sexual à pobre faxineira.

2009: a ineficácia e corrompimento das instituições brasileiras trazem uma série de leis e eventos que coíbem as liberdades individuais. A proibição ao cigarro alastra-se em todos os ambientes fechados do país, compondo um novo aparthaid social, onde os fumantes são classificados (pelos politicamente corretos) como doentes inescrupulosos interessados em adoecer os não-fumantes; o jornal O Estado de São Paulo é censurado pelo juiz Dácio Vieira, do TJ-DF, que conseguiu o cargo graças a José Sarney, pai de Fernando Sarney, aquele que entrou com a ação contra o jornal paulista e um italiano é preso numa praia em Fortaleza por dar um “selinho” na filha.
Nesse contexto, um sarcástico e inteligente professor universitário de uma cidade provinciana mantém casos, de uma tarde no motel, com moças muito mais jovens que ele.

Ateu fervoroso, com consistência pregava a palavra do ateísmo numa sociedade marcada pelo catolicismo (sobre o qual ele escarnecia) e pela ignorância que a fé religiosa traz – mesmo quando ela é tão hipócrita quanto as justificativas do juiz Dácio Vieira para censurar O Estado de São Paulo. Apesar de não acreditar na família enquanto instituição, falava com orgulho e afeto dos filhos.

Na faculdade, “ofendia” alguns alunos com seu ateísmo e outros com suas piadas sobre gays.
Acabou preso.
Não pelo seu ateísmo – ainda que isso, para a cidade provinciana onde vivia, fosse uma prova de sua falta de caráter para a fé e a ignorância.

Não por suas piadas sobre gays – ainda que isto agredisse seus alunos desprovidos de humor.

Por sua sexualidade. Sim, por sua sexualidade, pego num motel com três garotas cerca de 40 anos mais jovens do que – supostamente três adolescentes de 14, 15 anos (o que, até o presente momento, não está provado.)
O Professor vinha sendo investigado há quinze dias pelo DEIC (Departamento Especial de Investigação sobre Crime Organizado), após uma delação anônima (algo estimulado pela lei antifumo, mas a questão agora é o sexo.). Também secretário de Administração de outra cidade interiorana, ele há tempos lutava para combater a corrupção dentro da prefeitura onde atuava, sobretudo no superfaturamento de obras públicas.
À prisão, seguiu-se a exoneração de seu cargo de secretário nessa prefeitura e na faculdade em que lecionava (poderia dizer o nome dela e da cidade onde trabalhava, mas não irei).
Na Província onde morava, tão pequena e devastada pelo politicamente correto (como se já não possuísse defeitos o bastante) quanto àquela em que Coleman Silk vivia, em New England (nos EUA), os jovens e os adultos, que se portam como adolescentes, agem na superfície daquilo que se chama modernidade. Fazem sexo com a pessoa que conheceram na primeira noite e não ligam no dia seguinte, se divorciam por qualquer motivo e têm nos bares e bebidas alcoólicas (consumidas com voracidade) o único entretenimento – coisas que seriam chocantes até meados dos anos 60 e hoje são banais – mas que para eles, assim como para a massa de qualquer pequena e grande cidade, são transgressões, pois vivemos numa sociedade que se considera ultramoderna baseada nas normas vigentes há cinquenta anos e deixa de perceber seus problemas e preconceitos atuais, deixa de ver sua precariedade quanto ao respeito às liberdades individuais e não debate o que deixou de ser feito pela contracultura e o que precisa ser feito para o amanhã.
Ao saber do caso do Professor, a Sociedade da Província, agarra-se às mãos da ignorância, do falso moralismo, do desejo de massificação do outro, do senso-comum, da repressão sexual e do politicamente correto para destroçá-lo. Enquanto a Polícia o acusa de corromper menores, a Sociedade, por não saber bem que crime é esse, o acusa de pedofilia, sem saber ao certo a idade das garotas que estavam com ele no motel, e atribui o crime – mesmo que o Professor ainda não tenha sido condenado pela Justiça – à sua falta de Deus no coração. (Ocupados em destruir o Professor, os adultos da Sociedade deixam as filhas de cinco anos calçarem sandálias de salto para dançar funk e os filhos de nove anos entrarem em sites pornográficos.).
A Província julga, porém, o Professor não é o único mau elemento do caso. As três garotas, que também não possuem Deus no coração nem uma família bem estabelecida, são tão espúrias quanto ele. Mas são pobres – o que, para a Sociedade e sua legislação do politicamente correto, é um motivo válido para a redução da pena. Por isso, as meninas estão livres de ter o mesmo fim reservado à Faunia Farley.
Um castigo digno ao Professor, segundo a Sociedade, não é dar-lhe o mesmo fim de Coleman Silk – a morte – e, sim, um sofrimento em vida, na cadeia. Por desejar uma garota muito mais nova do que ele e transar com ela, “O Professor merece virar ‘bonequinha’, ser estuprado, apanhar na cadeia”, diz a Sociedade. “Não bastasse uma garota, três! Precisa de três?”, considera a Sociedade, ignorando o fato de que as garotas 40 anos mais jovens que o Professor têm um corpo com curvas e lubrificação, e muitas delas já sabem seduzir um rapaz de 20 e poucos anos que lhes interessa – como aqueles de costas largas, corpos com apenas 8% de gorduras, dirigindo um carro ganho do pai. As garotas do caso, certamente, pensam no que comprar com o dinheiro pago pelo Professor. Senão, seus pais, que a Sociedade não julgou nem condenou, cumprem essa função.
Praguejando o estupro, a agressão e a humilhação do Professor, a Província esqueceu de se perguntar:

“Será que ele usou Viagra?”, sem fazer qualquer analogia com Coleman Silk ou qualquer outro romance do Philip Roth, dado que, se nem Paulo Coelho vende muito por aquelas bandas, quem dirá o autor de A Marca Humana.

Além disso, ninguém foi criativo o suficiente para pensar numa nova versão da pornochanchada O Homem de Itu, baseado nesse caso – e mantendo-se o título original, evidentemente.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Caro Senador

De:
Danilo Thomaz (danilo_thomaz9@hotmail.com)
Enviada:
quarta-feira, 12 de agosto de 2009 4:07:11
Para:
jose-sarney@uol.com.br

***

Senador José Sarney,

Estou escrevendo porque não moro em Brasília e, no momento, não tenho condições de ir até a cidade para tentar dizer isso na sua cara. Vamos ao que interessa.

A sua postura diante de toda essa crise é de uma arrogância sem precedentes. Culpado ou não, o senhor, sobretudo por ser um senador da República, deveria pensar no Estado brasileiro, no quanto ele tem perdido, no quanto votações sérias e importantes, que podem mudar a vida do cidadão brasileiro, estão deixando de ser feitas por conta da sua presença presidindo o Senado. A sua presença ali torna inviável qualquer trabalho. A sua presença ali torna inviável o Brasil como país.

Sentado naquela cadeira, negando acusações e inventando propósitos que não existem - de que a imprensa paulista quer derrubá-lo - o senhor fragiliza o país como instituição. Sentado naquela cadeira, culpando a imprensa por tudo, o senhor ajuda a destruir este país, o senhor ajuda os políticos a serem mais cínicos, o senhor ajuda a Justiça a ser mais desmoralizada, ajuda a aumentar a violência, o senhor piora o país como um todo sendo que, enquanto senador, deveria fazer justamente o contrário. Justamente o contrário. Aquela cadeira não é sua. O Senado não é seu. Em qualquer país civilizado, políticos que estão debaixo de tantas acusações, como é o caso do senhor, ausentam-se para que a verdade venha à tona.

Pelo presidente que o senhor foi, o senhor JAMAIS deveria ser senador, representar um estado, cuidar da unidade federal. Jamais. O senhor foi um dos piores presidentes que este país, sempre mal governado, já teve. E eu não aceito a desculpa de que o senhor não nasceu para a política e, sim, para a literatura. O senhor é um péssimo escritor. E, de todos os editoriais da Folha de São Paulo, o seu é o pior: vazio, pobre em argumentos e uso de palavras, desprovido de qualquer utilidade pública.

Eu me sinto ofendido com a sua presença no Senado e na presidência da Casa. Extremamente ofendido.


Danilo Thomaz